Falta de estrutura, mudanças nos acordos e direito à desconexão estão entre principais reclamações. Há acusações também sobre tentativas de empregadores para burlar a lei e transformar celetistas em autônomos.
Cerca de 8,3 milhões de trabalhadores brasileiros passaram a dar expediente na sala ou em um quarto de suas casas por causa da pandemia do novo coronavírus. Estão em regime de teletrabalho, home office ou trabalho remoto, não importa a denominação, o certo é que esse contingente afastado do ambiente da empresa sente cada vez mais o peso do aumento das atribuições que são obrigados a cumprir por exigência dos patrões.
Levantamento inédito do Ministério Público do Trabalho – MPT revelou um aumento vertiginoso de denúncias de exploração dos trabalhadores em regime de trabalho em casa. De acordo com o levantamento, entre 2018 e 2019 quase não houve denúncias sobre o teletrabalho, mas em 2020, quando vários governadores decretaram quarentena para tentar reduzir a disseminação do coronavírus, o índice saltou 4.205%.
No ano passado, foram 1.679 denúncias e, em 2021, 762 reclamações na justiça. A maior incidência acontece nos grandes centros, com destaque para as capitais: São Paulo, com 407 denúncias (+ 16,1%); Rio de Janeiro, 181 denúncias (+7,1%); Porto Alegre, 108 denúncias (+ 4,2%) Brasília, 97 denúncias (+ 3,8%) e Belo Horizonte, com 76 denúncias (+ 3%).
As três empresas mais denunciadas pelos trabalhadores são a Almaviva do Brasil, Liq Corp S.A. e Correios.
Segundo a procuradora do Trabalho e vice-coordenadora Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho do MPT, Carolina De Prá Camporez Buarque, os motivos das queixas dos trabalhadores mudaram. No início da pandemia, a principal reclamação era a de que empregadores se recusavam a colocar seus funcionários em teletrabalho, mesmo tendo que esta possibilidade fosse totalmente viável.
Hoje as principais queixas dos trabalhadores são:
1 – Excesso de jornada e sobrecarga de trabalho
Se antes o trabalhador era responsável dentro da empresa por, por exemplo, quatro demandas, hoje é obrigado a cumprir um número maior, o que acaba o obrigando a trabalhar mais horas para entregar o trabalho dentro do prazo.
2 – Falta de estrutura para trabalhar
Os maus patrões não pagam pelo uso da internet, nem energia. Além disso, não oferecem equipamentos como mesas, cadeiras, computadores, e todo tipo de material de escritório.
“Além dos custos extras com a compra de equipamentos e contas de internet, quem não tem como pagar por uma mesa ou cadeira melhores, acaba tendo diversos problemas de saúde causados por falta de uma ergonomia adequada”, diz a procuradora.
Segundo ela, a reforma Trabalhista de 2017, inseriu no artigo 75 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, as alíneas de A e E, com previsões sobre a ajuda de custo para estruturação, como o fornecimento de equipamentos. “Quem arca com os custos do trabalho é quem obtém lucro com ele. Isto é a lógica da alteridade, que independe de lei expressa”, Carolina Buarque.
3 – Direito de desconexão
“A vida profissional se confunde com a pessoal de modo permanente. O trabalhador praticamente fica sem direito a uma hora de almoço, as mensagens por WhatsApp não respeitam horários de descanso e as reuniões são praticamente diárias e intermináveis. Isto afeta a saúde mental das pessoas”, afirma a procuradora.
4 – Mudança de vínculo empregatício
O artigo 6º da CLT, de 2011, diz que uma função realizada no ambiente do trabalho ou à distância, em domicílio, não afasta o vínculo empregatício.
“Hoje há controle informatizado das atividades do trabalhador, seja na hora em que ele faz login ao computador e sistema da empresa, seja respondendo a uma mensagem, sejam comparecendo a reuniões. Há um controle pessoal sobre toda a atividade desenvolvida, ainda que pelo uso de mecanismos tecnológicos e por isso ele continua sendo um empregado”, diz a procuradora.
O MPT tem investigado fraudes que buscam mudar de celetista para autônomos em situações de teletrabalho, podendo citar funções de teleatendentes, tradutores, jornalistas, secretariado, entre as denúncias. “O trabalhador em home office não pode ter a sua condição mudada de celetista para autônomo. Não é o fato do trabalhador estar fora do estabelecimento que ele deixa de empregado. Isto é fraude”, afirma a procuradora.
Empresas podem definir pelo trabalho presencial ou remoto – A legislação, a partir da Medida Provisória – MP 1046, diz que o empregador tem de avisar o trabalhador que ele passará ao teletrabalho com apenas 48 horas de antecedência. Ele também pode pedir o retorno ao trabalho presencial também com dois dias de antecedência.
“O trabalhador pode negociar a sua volta, ou não. Se ele considerar que as condições do trabalho presencial colocam em risco à sua saúde, em função da pandemia, é preciso dialogar com a empresa”, recomenda Carolina.
É preciso aprimorar a legislação – A procuradora do MPT diz que a legislação sobre teletrabalho precisa ir além da atual. Há situações, segundo Carolina, em que a saúde física e mental dos trabalhadores está em risco. “Um exemplo é a violência doméstica a que muitas mulheres são submetidas. Se antes as vítimas podiam ficar horas longe do agressor e até mesmo ter contato com outras pessoas para denunciar a violência, hoje elas são praticamente prisioneiras, sem condições de saírem de casa”, diz.
Para Carolina, o Projeto de Lei – PL 5581, de 2020, da Câmara Federal, é um avanço, mas alguns reparos precisam ser feitos. Um deles é sobre a fiscalização do trabalho, em virtude da inviolabilidade do lar. “Não se pode adentrar a casa das pessoas para fiscalizar as condições de trabalho sem autorização prévia e isso pode camuflar muitas irregularidades trabalhistas que lá ocorrem”, explica a procuradora.
Como fazer denúncias ao MPT – Carolina De Prá recomenda que sejam registradas todas as trocas de mensagens, eventuais conversas, e registros fotográficos do ambiente de trabalho. “Procurem seu sindicato, o MPT, busquem conhecer seus direitos e lembrem-se que o fato de estar em casa não afasta a incidência dos direitos trabalhistas”.
As denúncias ao Ministério Público do Trabalho podem ser feitas pelo Portal do MPT ou pelo aplicativo MPT Pardal.
Recomendações da Organização Mundial do Trabalho – Um documento da Organização Mundial do Trabalho – OIT revela preocupação com o teletrabalho realizado em toda a América Latina. Estimativas preliminares da organização indicam que, no pior momento da crise, no 2º trimestre de 2020, nos países da região entre 20 e 30% dos assalariados, cerca de 23 milhões estavam trabalhando em domicílio, durante a pandemia. Em 2019 este número era inferior a 3%.
Segundo a Organização, sem os controles adequados, trabalhar em casa pode levar a relações de trabalho que não reconhecem a dependência e, portanto, a aumentos no trabalho autônomo ou relações de trabalho disfarçadas.
Para a OIT, é preciso que haja acordo entre as partes; organização e horário de trabalho; segurança e saúde no trabalho; equipamentos e itens de trabalho; proteção do direito à privacidade dos trabalhadores e trabalhadoras; dimensão de gênero e teletrabalho e relação de trabalho e cumprimento da legislação.
Trabalho em casa no Brasil – Cerca de 8,3 milhões de pessoas passaram a trabalhar em casa no Brasil. O dado que oscilou para mais ou para menos durante a pandemia, de acordo com um levantamento publicado no livro “A devastação do trabalho a classe do labor na crise da pandemia”, do Instituto de Economia da Unicamp.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2018, eram 3.850 milhões pessoas em teletrabalho, em 2019 saltou para 4.595 milhões, o que demonstra que a Covid-19 foi responsável por praticamente dobrar o número de pessoas trabalhando remotamente.