*Alice Mariz, Kênia Lara da Silva, Márcia Caúla e Mario Dal Poz
Os profissionais da saúde têm enfrentado dramas, originados por problemas crônicos, desde que a pandemia da Covid-19 se instalou, em especial os que atuam no campo da enfermagem.
Diversos estudos vêm apontando fragilidades e precarizações nas condições de trabalho de enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem no paÃs. Há cerca de 20 anos esses profissionais vêm pleiteando a adoção de medidas que revertam esse cenário, especialmente por meio da regularização da jornada de 30 horas semanais e da fixação de um piso salarial compatÃvel com o trabalho realizado. Essa busca se alinha com as recomendações da Organização Internacional do Trabalho – OIT que indica, para a área de saúde, a jornada de 30 horas como a mais adequada, tendo em vista os desgastes sofridos pelos trabalhadores nesse setor. Somem-se a isso as condições especÃficas do trabalho da enfermagem – com baixos salários, sobrecarga, dupla jornada, contratos frágeis, assédios, dentre tantos outros problemas. Essas condições repercutem em maiores Ãndices de adoecimento das trabalhadoras e comprometimento da segurança e da qualidade do cuidado prestado.
Podemos exemplificar essa situação no contexto da pandemia da Covid-19. Segundo dados do Ministério da Saúde, por meio dos boletins epidemiológicos, notam-se que dentre os profissionais de saúde, os técnicos e auxiliares de enfermagem, seguido dos enfermeiros, ocupam os primeiros lugares em número de casos e óbitos.
Acontece que, atualmente, não existem polÃticas que fixam, em nÃvel nacional, jornada de trabalho de 30 horas e piso salarial, o que leva grande parte dos profissionais a se submeterem a múltiplos vÃnculos trabalhistas em busca dos rendimentos necessários a seu sustento e de sua famÃlia. Devemos ressaltar que a enfermagem é composta majoritariamente por mulheres, muitas das quais assumem sozinhas ou com grande parcela de contribuição, os orçamentos familiares. Em função disso, são submetidas a cargas excessivas de trabalho, somadas a perÃodos de recuperação e descanso insuficientes, levando-as à exaustão fÃsica, mental e emocional.
Com o intuito de enfrentar essa situação, foi proposto o Projeto de Lei – PL 2564, de 2020, que pretende instituir o piso salarial nacional do Enfermeiro, do Técnico de Enfermagem, do Auxiliar de Enfermagem e da Parteira. O PL está no Senado para ser avaliado e votado. Porém, embora em pesquisa realizada pelo próprio site do Senado, haja aproximadamente 984.227 pessoas favoráveis à proposta e somente 5.035 contrários, o PL tem encontrado obstáculos para sua aprovação, em especial de dirigentes de corporações e empregadores do setor privado. Entre as justificativas para esse posicionamento contrário está o argumento de que a redução da carga horária das trabalhadoras de enfermagem leva a impactos financeiros nas instituições. As entidades que defendem o PL 2564 demonstram que esse argumento é frágil, pois os impactos advindos dos adoecimentos, de uma assistência insegura, em função das jornadas exaustivas, com condições precárias que induzem a erros e danos no processo de trabalho, representam gastos maiores para instituições públicas e privadas do setor.
Ademais, há um componente de custos imensuráveis no debate sobre a jornada de trabalho e o piso salarial que se refere à dimensão subjetiva do trabalho que, quando realizado sob condições que representam reconhecimento social e financeiro, repercutem em maior satisfação, maior identificação e maior comprometimento com o que se faz. Em consequência há maior preocupação e entrega ao exercÃcio profissional repercutindo numa assistência mais segura e de qualidade para pacientes e trabalhadoras.
A proposta de regulamentação da jornada de trabalho e do piso salarial é um processo que se arrasta há décadas. Contudo a categoria parece possuir hoje maior capacidade de articulação e convergência dada a visibilidade alcançada com os movimentos de valorização da profissão exibidas em vários paÃses durante o ano de 2020. Deve-se lembrar que, em outras épocas, foi sinalizado o aceite desta proposta, mas apenas para os enfermeiros graduados, excluindo os técnicos e auxiliares, o que a categoria nunca aceitou.
A ausência de polÃticas que garantam condições dignas de atuação à categoria pode também estar relacionada a fatores como misoginia, racismo, classismo e à LGBTQIA+fobia. Pesquisas apontam que cerca de 85,6% do total de profissionais da enfermagem são mulheres e mais da metade são negras (pretas e pardas), principalmente entre técnicos e auxiliares de enfermagem.
Investir no desenvolvimento das condições de trabalho da enfermagem, incluindo boas remunerações, planos de cargos e salários e de aperfeiçoamento profissional, significa enfrentar diretamente as disparidades sociais e as opressões às quais determinados grupos estão expostos no Brasil, pois o mercado de trabalho envolve múltiplos aspectos e norteia as condições às quais os profissionais são submetidos.
A Pesquisa Perfil da Enfermagem (Cofen/Fiocruz), publicada em 2013, apresentou um diagnóstico da situação da enfermagem no Brasil que permitiu compreender as diversas realidades locais que se apresentam num paÃs com dimensões continentais como o Brasil. O cenário mostrado pelo estudo gerou dados que têm subsidiado a discussão de propostas polÃticas para mudanças nessa profissão tão necessária, mas tão negligenciada. Observa-se hoje um contingente de profissionais mais politizados, ainda que com poucos avanços do ponto de vista das polÃticas públicas e de recursos humanos para a categoria.
Assim, na luta por melhores condições de vida para a população, incluindo a redução das disparidades e o acesso a assistência de saúde de qualidade, cabe planejar e adotar ações que tragam impacto efetivo para a maior força de trabalho em saúde no Brasil. Um instrumento para isso é a produção de informações relevantes, em estudos sobre demografia e mercado de trabalho em saúde em enfermagem que possibilite e disponibilize informações confiáveis e acessÃveis que poderão nortear e embasar a construção de estratégias assertivas que trarão benefÃcios não só aos profissionais de enfermagem, mas a toda população brasileira.
*Alice Mariz, Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da UERJ.
*Kênia Lara da Silva, Professora Associada da Escola de Enfermagem da UFMG.
*Márcia do Carmo Bizerra Caúla, Enfermeira Especialista em Saúde Pública, Coordenadora da Câmara Técnica e Unidade de Processo Ético do COREN-MG.
*Mario Dal Poz, Professor Titular do Instituto de Medicina Social da UERJ.