Senadores da comissão pretendem aprofundar as inquirições sobre falhas do governo federal na Saúde e nas Relações Exteriores, particularmente sobre vacinas. Secretária conhecida como “capitã cloroquina” também apela ao STF para ficar em silêncio.
Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 no Senado entra na terceira semana com um arsenal cada vez maior contra o governo. Os integrantes do colegiado permanecem focados nas ações e omissões do governo federal no combate à pandemia. Os depoimentos de terça-feira, do ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e de quarta, do ex-ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, são centrais para o trabalho realizado pelos parlamentares até o momento e considerados o fechamento da primeira etapa das investigações. O passo seguinte será ouvir cientistas e pesquisadores que trarão embasamento científico para a série de acusações levantadas nas audiências até aqui.
Os avanços da CPI não se limitam, contudo, às oitivas no Senado. Até o momento, a CPI recebeu 136 documentos que foram solicitados a órgãos federais, estaduais e municipais. A maioria dos requerimentos se deve a investigações sobre uso de verbas para combater a pandemia nos entes federais. Os senadores se cercam de documentos para quebrar qualquer discurso de perseguição política. Além do impacto entre os eleitores e no Congresso, o desfecho das investigações deve resultar em responsabilização criminal e administrativa.
Além de Ernesto e Pazuello, senadores pretendem ouvir a secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, também conhecida como Capitã Cloroquina. Mas a executiva já seguiu os passos do ex-chefe. Advogados de Pinheiro também ingressaram com pedido no Supremo Tribunal Federal para que ela adquira o direito de se manter em silêncio no depoimento à CPI, marcado para quinta-feira, 20. Médica, Mayra Pinheiro responde a um processo por improbidade administrativa junto com Pazuello, por conta da crise do oxigênio em Manaus/AM. A secretária esteve no estado dias antes do colapso.
Integrante da CPI, o líder do PT no Senado, senador Rogério Carvalho (SE), considera fundamentais os depoimentos de ex-integrantes do governo federal. Mas entende que aproxima-se a hora de apelar à ciência na Comissão. Uma das questões seria estimar quantas vidas teriam sido salvas caso o governo tivesse defendido recomendações científicas no combate à crise sanitária, como distanciamento social, políticas de lockdown, uso de máscaras e compra de vacinas. “Vamos ter que ir mais a fundo. O que poderíamos ter evitado e que não foi evitado? Temos que trazer a academia, estudos em andamento, estudos de fora do país que tratam das mortes evitáveis e vidas perdidas por atuação equivocada e por determinação do presidente da República”, afirmou.
O senador acredita que Pazuello deve falar em seu depoimento na quarta, já que o habeas corpus concedido pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski libera o militar do Exército de produzir provas apenas contra si. “Temos que olhar para o Pazuello e tudo que aconteceu no tempo que ele foi ministro. As ações ou inações provocaram o agravamento da pandemia e aumento da mortalidade. Ele vai confirmar tudo que a gente já vem identificando e que Bolsonaro fez. No fim e ao cabo dessa oitiva dele e do Ernesto Araújo, vamos ter elementos que vão nos permitir afirmar que o Bolsonaro não só deixou a coisa acontecer, mas atuou de forma decisiva para ampliar a pandemia no país. Foi um aliado do vírus”, apontou.
Hierarquia – O senador Otto Alencar (PSD-BA) vai na mesma direção. Ele destaca que a CPI já provocou fatos positivos: o site do Ministério da Saúde, por exemplo, não faz mais propaganda de cloroquina; e o atual ministro da Saúde, o médico Marcelo Queiroga, é a favor do uso de máscara e da vacinação da população. Por outro lado, destaca Alencar, a vacinação segue em um ritmo ruim, e a expectativa é que a pandemia volte a recrudescer. Para o parlamentar, mesmo com as mudanças, o governo segue “brigando com os fatos”. “Insistem em nos colocar como o quarto país que mais vacina, mas 47% dos idosos com mais de 80 anos ainda não tomaram a segunda dose da vacina”, exemplificou.
Para Alencar, o caminho será questionar Pazuello sobre as determinações de Bolsonaro no que diz respeito à compra de vacinas, ao atraso no caso da Pfizer e se o negacionismo de Bolsonaro dobrou o Ministério da Saúde com base em uma relação hierárquica entre presidente e general. O senador lembrou que, em 22 de outubro de 2020, após Bolsonaro cancelar o protocolo de compra da vacina CoronaVac, o então ministro disse a célebre frase “um manda e o outro obedece”.
“Temos, no mínimo, dez declarações pontuais do presidente em 2020 dizendo que não compraria a CoronaVac ou outras vacinas. Disse que as pessoas iam virar jacaré, que era para comprar vacina ‘na casa da mãe’. O Pazuello é militar. Acredito que ele tentou se esforçar. Quando ele disse que ‘um manda e outro obedece’, ele estava se referindo à hierarquia. Ele é um general e subordinado ao presidente da República. É preciso saber se ele recebeu ordens de estimular a compra de hidroxicloroquina, não usar máscara, permitir aglomerações. Essas coisas precisam ser esclarecidas. A história do oxigênio em Manaus, achar que podia ter imunidade de rebanho, isso é de uma ignorância científica, sem precedentes”, completou Alencar.
Entre os senadores, há, naturalmente, divergências sobre o andamento da CPI. O governista Marcos Rogério (DEM) acusa a cúpula da CPI de intimidar as testemunhas e de começar os interrogatórios com “sentenças” já formadas. “Quer reproduzir nas testemunhas aquilo que é a sua própria concepção. Tem uma sentença no bolso e aí, vez ou outra, questiona para preencher o que quer confirmar na sua sentença, no seu julgamento”, disse.
O senador Humberto Costa (PT), por sua vez, considera que as indagações foram pertinentes. Ele acredita que os depoimentos já revelam indícios de crime por parte de autoridades do governo federal. “Eu acho que sim (existência de crime), coisas como desídia (negligência), prevaricação, crime contra a saúde pública, muito claramente, muitas coisas. E vamos investigar crimes contra os direitos humanos, crime de genocídio contra comunidades indígenas e crime de responsabilidade”, desta.
Repercussões criminais de um depoimento – Juristas ouvidos pelo Correio Braziliense apontam que, embora seja possível punir quem apresentar falso testemunho na CPI, qualquer informação falsa prejudica as investigações e pode dificultar a punição dos responsáveis por omissões e demais crimes relacionados à gestão da pandemia. A constitucionalista Vera Chemim destaca que o depoimento controverso tem menor valor legal, caso sejam confirmadas as declarações inconsistentes. “O depoimento de Wajngarten pode ser avaliado juridicamente, como, no mínimo, contraditório, o que leva a suspeitar da idoneidade de sua contribuição junto à CPI. Diante de tal constatação, fica difícil utilizar o seu depoimento para enquadrar possíveis ou prováveis omissões ou atos comissivos de membros do governo federal, o que demandaria um rol mais exaustivo de testemunhas envolvidas, principalmente no âmbito do Ministério da Saúde”, explica.
Para Adib Abdouni, advogado criminal e constitucional, o depoimento de Wajngarten, mesmo que apresente contradições, trouxe provas importantes paras as investigações e deve resultar em desdobramentos jurídicos. “O testemunho prestado por Wajngarten resultou em material de elevada importância para a formação do relatório da CPI, haja vista que as declarações do depoente e documentos que disponibilizou – a exemplo da carta enviada Pfizer e não respondida com a urgência devida pelos integrantes do governo federal, desaguando no atraso inescusável na compra de imunizantes – confirmam a ocorrência das omissões acerca do implemento de políticas públicas ágeis e de caráter nacional para conter a disseminação da covid-19”, diz. O presidente da CPI, senador Omar Azis (PSD-AM), tem um entendimento semelhante. Avalia que o ex-secretário Wajngarten deu uma contribuição relevante à CPI, ao tornar pública a carta da Pfizer propondo vacinas ao governo federal em setembro de 2020.
Raphael Sodré Cittadino, presidente do Instituto de Estudos Legislativos e Políticas Públicas – IELP, explica que, em outros processos, o acusado pode se retratar antes da condenação, para evitar o cumprimento de pena. No entanto, essa possibilidade não existe em inquérito em andamento no Congresso. “No falso testemunho em processo administrativo ou judicial, previsto no Código Penal, a pessoa pode se retratar até a sentença. Como não há essa previsão na lei 1579/52, essa possibilidade não se aplica ao falso testemunho em CPI. E, caso comprovado o falso testemunho em processo criminal a ser deflagrado após denúncia do Ministério Público, a pessoa poderá ser condenada sem chance de retratação. O Ministério Público, recebida a representação, avaliará se estão presentes indícios de autoria e materialidade”, ressalta.