Via CNTS
A pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Lígia Giovanella, critica, no comentário abaixo, as assertivas pró-ajuste do governo brasileiro, apresentadas e defendidas no relatório Um Ajuste Justo: Análise da eficiência e da equidade do gasto público no Brasil, do Banco Mundial, em especial, no que se refere ao capítulo sobre o financiamento do setor da Saúde.
O comentário resultou da participação da pesquisadora em um debate sobre o documento, realizado no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Uerj em 6 de dezembro de 2017. “Embora o documento seja difundido em um envoltório técnico e científico, o cunho é em seu cerne, político”, inicia Ligia. Segundo ela, o texto enfatiza as supostas ineficências do setor Saúde para defender os cortes, desconsiderando o subfinanciamento crônico a que está submetido. A pesquisadora aponta que o documento nega as heterogeneidades sociodemográficas nacionais e a determinação social dos processos saúde-doença.
Leia, abaixo, a íntegra da análise crítica da pesquisadora da ENSP/Fiocruz Ligia Giovanella:
Ajuste fiscal e injustiças em saúde – Breve comentário ao relatório do Banco Mundial 2017 “Um Ajuste Justo: Análise da eficiência e da equidade do gasto público no Brasil” – capítulo saúde
Para iniciar é necessário esclarecer que embora o documento seja difundido em um envoltório técnico, científico, o cunho do relatório é em seu cerne, político.Como disse José Celso Cardoso Jr o “relatório busca transformar ideologias em verdades científicas”.
Alinha-se a uma visão liberal, a uma modalidade de intervenção governamental no campo social (ou regime de welfare state) residual, focalizada, centrada na assistência social. O Estado somente deve intervir e assumir responsabilidade social quando o indivíduo, sua família ou redes comunitárias não conseguem garantir a satisfação de necessidades mínimas no mercado em uma concepção de cidadania invertida, em que o indivíduo entra em relação com o Estado no momento em que se reconhece como um não-cidadão (Fleury, 1985). Defende a visão de mundo que o Estado somente deve garantir necessidades básicas para aqueles grupos que não foram ‘aptos’, que ‘fracassaram’ em garantir suas necessidades no mercado, prestando assistência intermitente aos comprovadamente muito pobres e garantindo uma cesta restrita de benefícios de natureza emergencial, e forçando a participação no mercado de trabalho.
O capítulo da saúde é indissociável do teor e mensagens do relatório como um todo.
Denunciar a falácia da principal mensagem: “O Governo Brasileiro gasta mais do que pode e, além disso, gasta mal”.
Na afirmativa gasta mais do que pode, está implícito que gasta demais – a receita principal é então cortar gastos.
Assim, em segundo lugar, é necessário ter claro que o objetivo do relatório é recomendar cortes de gastos públicos especialmente gastos sociais, as chamadas despesas primárias, pouco abordando o problema dos elevados juros e gastos financeiros, nada se recomendando para redução das elevadas despesas financeiras que consomem mais de um terço das receitas da União.
Quais as consequências destas mensagens para o SUS? O governo brasileiro gasta muito com saúde?
Não! A comparação internacional aponta claramente para o baixo nível de gastos públicos no Brasil e o crônico subfinanciamento do SUS. Os gastos públicos com saúde no Brasil como proporção do PIB correspondem a menos de 4%. Nos países da OECD, em média, os gastos públicos em saúde correspondem a cerca de 7% do PIB. No Reino Unido, os gastos públicos com saúde correspondem a 7,8% do PIB, na Alemanha a 8,4%, na Espanha a 6,6% (Giovanella & Stegmüller, 2014). Ou seja, o governo brasileiro gasta cerca da metade do que a nossa riqueza nacional nos permitiria gastar.
O SUS é cronicamente subfinanciado! Os gastos públicos per capita no Brasil são estimados em 549 dólares em paridade do poder de compra (OECD, dados de 2013), bastante baixos em comparação com os países da OECD: Por exemplo, correspondem a 32% dos gastos públicos per capita de Portugal (US$ 1717) ou 26% dos gastos Espanha (US$ 2090) ou 13% dos gastos públicos de saúde da Alemanha (US$ 4157).
Ademais do subfinanciamento do SUS, a redução de gastos imposta pela EC 95 (a grande medida do ajuste fiscal justo defendida no relatório) significará o desmantelamento do SUS.
Embora o documento mostre dados da comparação internacional que apontem que a proporção de gastos públicos em saúde no Brasil é baixa, não é isto que o documento destaca. O documento frisa que os gastos totais em saúde no Brasil são tão elevados quantos nos países da OECD e mais elevados do que nossos parceiros BRICS.
Assim, da comparação internacional de gastos públicos com saúde, pode-se concluir que há espaço para cortar gastos em saúde? Não! Há sim, espaço para aumentar! Para dobrar os gastos públicos com saúde no Brasil. Poder-se-ia passar dos atuais 240 bilhões para 420 bilhões de reais ao ano!
Foco nas ineficiências e recomendação de cortes de gastos públicos em saúde
Na parte referente à saúde, o foco do relatório está na eficiência produtiva do sistema de saúde brasileiro como um todo, fazendo-se inúmeros cálculos, relacionando recursos e produtos para encontrar supostas ineficiências.
Para demonstrar as de antemão pretendidas ineficiências, o relatório pouco se baseia em artigos publicados em revistas cientificas, ou revisões sistemáticas sobre a eficiência de gastos públicos em saúde o que daria algum aval para qualidade das análises /evidências. As metodologias empregadas podem ser questionadas quanto a determinadas fontes, variáveis selecionadas, análises estatísticas etc .
O relatório apresenta um conjunto de estimativas de ineficiências, aparentemente sofisticadas em seu cálculo, sem reconhecer que se tratam disto: estimativas. Apresenta-as como verdades categóricas na forma de assertivas indiscutíveis.
Centrarei meus comentários em algumas dessas assertivas e principais mensagens veiculadas, sem, contudo entrar em detalhes das análises econômicas de função de produção para cálculos das ineficiências apresentadas. Isto, porque, o relatório BM, para além de detalhes técnicos, é essencialmente político – centra sua mensagem no desperdício e ineficiência do Estado brasileiro: defende menos Estado e mais mercado nos setores sociais.
Na assertiva 156: “Foram identificadas ineficiências significativas nas despesas com saúde no Brasil em comparação ao desempenho de outros países”, compara gastos totais (públicos e privados) entre países não identificados e conclui que: “o Brasil poderia ter prestado o mesmo nível de serviços usando 34% menos recursos.”
Mensagem implícita – poderia cortar 34% dos gastos em saúde e prestar a mesma quantidade de serviços.
Todavia, não é feita uma análise comparativa entre países quanto à eficiência do gasto público: analisam-se os gastos totais. Ora a performance do sistema brasileiro é altamente influenciada pela elevada participação dos gastos privados no total do gasto em saúde no Brasil (cerca da metade). O que é reconhecido, apenas em uma nota de rodapé que aponta que estes resultados “são influenciados pelos prestadores de saúde privados (que gastam grandes quantias com uma pequena parcela da população)”.
Ressalta-se ainda, que na análise não são considerados determinantes sociais que certamente impactam os resultados de saúde da população.
Ademais, classificações e ranqueamentos do desempenho de sistemas de saúde entre países, são vistos cada vez com maior ceticismo, pois diferentes resultados são encontrados a depender da prioridade conferida aos objetivos de equidade, de contenção de gastos, eficiência ou responsividade (Oliver, 2012).
Aqui neste relatório, sem dúvidas, a prioridade máxima é conferida à eficiência e aos cortes de gastos.
Na assertiva 157: “Grandes ineficiências também podem ser identificadas internamente no Brasil se compararmos os gastos e o desempenho de vários municípios”, o relatório conclui que na atenção primária poderia cortar os gastos em 23% “mantendo os mesmos níveis de resultados (o que implicaria um potencial de economia de R$ 9,3 bilhões), e em 34% nos serviços hospitalares (o que geraria uma economia potencial de R$ 12,7 bilhões)”.
O relatório conclui que poderia cortar “R$ 22 bilhões, ou 0,3% do PIB, no seu Sistema Único de Saúde (SUS) sem nenhum prejuízo ao nível dos serviços prestados, nem aos resultados de saúde”.
Embora o relatório informe que no cálculo da eficiência municipal tenham sido consideradas heterogeneidades sociodemográficas, a recomendação de que todos os municípios alcancem o mesmo nível de eficiência parece desconhecer esta diversidade. Mesmo em um país com menores assimetrias não seria razoável, nem de boa fé, recomendar que todos os municípios alcancem os mesmos resultados.
Em um país continental como o Brasil com imensas desigualdades regionais, sociodemográficas e culturais, ademais de ser impossível, não é razoável nem desejável alcançar esta homogeneidade.
O que se busca em um sistema público de saúde, o que se busca com o SUS, não é garantir o máximo de eficiência, mas sim a garantia do direito à saúde, o acesso a serviços conforme necessidades. A preocupação do estudo deveria ser na identificação de lacunas de acesso, demandas não assistidas, e em como promover o acesso conforme necessidades. A eficiência é um objetivo secundário, subordinado à garantia do acesso.
Neste sentido, considerando que a grande maioria dos municípios brasileiros são pequenos (68%% dos municípios brasileiros são menores de vinte mil habitantes e 1200 municípios tem menos de cinco mil) será necessário dispor de serviços acessíveis, que garantam acesso oportuno, mesmo com perda de economia de escala. O objetivo aqui não é a eficiência, mas garantir o acesso. A garantia de acesso a populações esparsas sempre significará alguma perda de eficiência.
Certamente que a eficiência, isto é, o melhor uso de recursos públicos, uma alocação ótima dos recursos públicos para alcançar mais e melhores produtos, é um dos objetivos de políticas públicas de saúde. Todavia, ao transformar a eficiência no objetivo principal, perde-se qualquer perspectiva da garantia do direito à saúde.
Ineficiência e escala
Nos próximos itens a principal conclusão é que “Ineficiências em atendimento primário e avançado oferecem oportunidades para grandes economias. A eficiência está relacionada à escala (inclusive o tamanho do município, o número de leitos e o tamanho dos hospitais)”.
A ampliação do número de hospitais públicos de pequeno porte é uma consequência do processo de descentralização do SUS, por meio do qual os municípios passaram a assumir responsabilidades na prestação de serviços de saúde, na maioria das vezes na ausência de qualquer estrutura assistencial pública (ou mesmo privada no caso dos pequenos municípios). Esta ampliação buscou facilitar o acesso geográfico, principalmente em áreas rurais. Todavia, a expansão não planejada levou a uma atomização do sistema, desnecessária duplicação de oferta com ausência de economia de escala para garantir serviços com alguma qualidade. Muitos destes pequenos hospitais no momento não estão mais cadastrados como hospitais e os pequenos municípios não recebem repasses de média complexidade correspondente aos atendimentos ai realizados.
O elevado número de hospitais de pequeno porte (até 50 leitos) em geral de propriedade municipal, com limitada incorporação tecnológica e baixa resolutividade, é um problema reconhecido pelos gestores e tentativas de qualificar estes estabelecimentos de modo que respondam às necessidades regionais vem sendo realizadas (40% dos hospitais integrantes da rede SUS possuem até 30 leitos) (Braga Neto et al, 2012). Todavia, sem muito êxito, pois avançou-se pouco na regionalização do SUS. Deve-se também lembrar que as políticas para equacionar esta situação estão condicionadas pelas limitações de acesso não apenas geográfico, mas também financeira. A maioria dos leitos no país é privada (66% dos leitos do país) e muitos hospitais privados negam-se a ofertar para o SUS procedimentos considerados pouco rentáveis, uma vez que sua oferta não tem por objetivo atender necessidades populacionais, mas sim sua sustentabilidade e rentabilidade financeira (Braga Neto et al 2012).
Ineficiências geradas pela falta de integração do sistema
A legislação brasileira e normas do SUS preveem a constituição de redes regionalizadas e integradas que garantam acesso com economia de escala. A partir do decreto 7508 foi proposta reformulação da programação regional de serviços de saúde com a Programação Geral de Ações e Serviços de Saúde (PGASS) que prevê a programação e pactuação regional de serviços de saúde nas CIR (Comissões Intergestores Regionais de Saúde) a partir de parâmetros de necessidades de saúde, o que implica em programar investimentos para cobertura de necessidades. Alguns estados, como o Ceará avançaram nesta programação, ademais de investir na implantação de policlínicas regionais para atenção especializada ambulatorial, gerenciadas por consórcios intergovernamentais constituídos em cada região de saúde do estado.
Os temas da regionalização e a importância do nível estadual neste processo, não são abordados no relatório. O documento reconhece, todavia, a necessidade de maior integração do sistema e a coordenação entre os níveis primário, secundário e terciário e recomenda a ampliação da atenção primária robusta para o alcance de maior eficiência do sistema.
Não obstante, os consultores do BM parecem desconhecer a realidade da atenção primária no país, pois para recomendar a ampliação dos procedimentos realizados pela enfermagem, no relatório afirma-se que “No Brasil, os sistemas não foram projetados para manter os procedimentos menos complexos em instalações menos sofisticadas”. Na realidade, as nossas unidades básicas de saúde são instalações bem pouco sofisticadas, necessitando melhorias na qualidade de sua estrutura (Bousquat el al, 2017). Certamente deve-se ampliar o escopo das ações realizadas por enfermeiros graduados. A legislação e normatização nacionais permitem diagnóstico e prescrição pela enfermagem seguindo protocolos de um conjunto ampliado de programas. Procedimentos nem sempre realizados até mesmo por desconhecimento dos profissionais (Martiniano, Uchoa, Coelho, 2014). A prática da enfermagem na Estratégia Saúde da Familia é bastante diversificada no país, com atuação clinica mais ampla em zonas remotas e desfavorecidas e principalmente frente à ausência ou intermitência do médico com longos períodos sem médicos nas equipes, problema amenizado com o Programa Mais Médicos que reduziu a escassez de médicos nestas regiões (Girardi et al, 2016). Um obstáculo importante para esta ampliação são as disputas corporativas, principalmente de parte das entidades médicas que não reconhecem a escassez de médicos no país.
“As despesas com saúde são progressivas – embora os gastos tributários sejam altamente regressivos”
Um ponto positivo a considerar é a recomendação de abolição de subsídios fiscais para seguros privados e despesas de saúde. O relatório alerta que: “O setor público também gasta recursos significativos por meio de gastos tributários, principalmente para subsidiar seguros privados de saúde (0,5% do PIB). Indivíduos podem deduzir despesas com saúde das despesas tributáveis, o mesmo se aplica para pessoas jurídicas que fornecem tratamentos de saúde para os seus empregados.”
O relatório mostra que as despesas públicas com saúde são progressivas, isto é, o SUS atende e gasta mais com os mais pobres; e que os gastos tributários são altamente regressivos; isto é beneficiam concentradamente o quintil mais rico.
O relatório sugere a abolição progressiva de subsídios fiscais para seguros privados e despesas de saúde abatidas do imposto de renda, o que certamente deveria ser acompanhado do investimento destas receitas adicionais na melhora da oferta do SUS para garantia do aceso universal com qualidade.
Em resumo
O relatório travestido de caráter técnico faz proselitismo da agenda política do BM de Estado mínimo, focalização e seletividade na política social e de saúde. No capítulo saúde centra sua análise na eficiência e prescreve cortes de despesas em todos os setores de atenção, inclusive em atenção primária. Nega o desfinanciamento crônico do SUS e a extrema privatização da atenção especializada no SUS, seja nos setores de diagnóstico e hospitalar (66% dos leitos e 87% dos tomógrafos, por exemplo, são privados). Nega as heterogeneidades sociodemográficas nacionais e a determinação social dos processos saúde doença. Ademais atribui ao SUS, ineficiências inerentes à elevada participação do setor privado no sistema de saúde brasileiro.
Políticas de austeridade, como os cortes propostos, acentuam efeitos perversos das crises econômicas sobre a saúde, pois reduzem os orçamentos públicos em período de demandas ampliadas devido às repercussões do desemprego e redução de renda da população sobre o estado de saúde da população (Giovanella & Stegmüller, 2014).
Ao final, propõe universalisar a atenção básica, contudo sem ampliar o acesso a serviços especializados e hospitalares, pois serviços secundários e terciários seriam ineficientes (supostamente poderiam ser deixados ao mercado). Recomenda, portanto um universalismo básico, um SUS responsável somente pela atenção básica. Nega o direito universal à saúde e ao acesso a serviços de saúde de qualidade conforme necessidades.
Por um SUS público universal de qualidade!
Pela revogação da EC 95 já!
Nenhum direito a menos!
Nenhum serviço a menos!