Reportagem de Joana Zanotto, Via Maruim
Enquanto ouvia o repasse da audiência de conciliação entre prefeitura e sindicato ocorrida no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Stelinha chorava. Foi a primeira vez em que se fez tamanho silêncio nas assembleias das/os trabalhadoras/es. A agente comunitária de saúde do Monte Cristo participou ativamente dos 38 dias de greve do serviço público municipal. Nesta quarta-feira (22/2) antes mesmo de saber o que havia ocorrido na reunião de seis horas entre as duas partes, agradeceu a todo mundo que esteve junto a ela no movimento.
A notícia não era para pouco. O prefeito Gean Loureiro (PMDB) sem nunca ter recebido pessoalmente a categoria, defendendo que não iria dialogar com grevistas, tinha começado a ceder desde a semana passada, tendo proposto num primeiro momento um novo projeto de lei que voltava atrás em dois pontos reivindicados pelas/os servidoras/es. Na audiência desta quarta (22/2), Gean estava presente, e assinou um acordo em que se comprometeu a enviar novo projeto de lei complementar à Câmara Municipal que altera substancialmente a sua proposta inicial para o Plano de Cargos, Carreira e Salários (PCCS) das servidoras e servidores. Ele reincorporou a maioria dos ganhos históricos da categoria que havia destituído com o seu Pacote de Medidas apresentado e aprovado em tempo recorde em meados de janeiro.
Apesar do grande recuo de Gean, que anulou praticamente todos os cortes de direitos que havia feito passar, servidores deliberaram a manutenção da assembleia até o dia seguinte para avaliação detalhada da contraproposta do executivo municipal. O clima de hoje (24/2) foi de vitória e por uma ampla maioria foi decidido pelo retorno imediato das atividades.
Incansáveis
A agente de saúde Stela foi uma das mulheres fortes que me tocou enquanto acompanhei este movimento. Não tinha tempo ruim para ela assim como para muitas outras. No 16 de fevereiro ela estava deitada na maca instalada por um grupo da saúde na Tenda do Cuidado – a tenda foi montada para atendimento das/os servidoras/es com terapias alternativas de saúde, como acupuntura. Ela comentou que estava com dores, mas que já iria se levantar para continuar a luta. E na passeata estava de volta.
Para a servidora vestida com a camiseta do Núcleo de Educação Infantil Nagib Jabor, a batalha era distinta. Assumiu o microfone para pronunciar seu pedido de esclarecimento diante de milhares de colegas da rede municipal que também participavam da assembleia neste dia. Ela gostaria de saber como convencer as pessoas sobre a necessidade de estar em greve.
– O difícil não é explicar à comunidade, eu sou cobrada pelo meu marido em casa, disse na ocasião em que a greve completava 35 dias, no 20 de fevereiro.
Nisso se manifestaram as mulheres a frente sentadas. Durante o último mês, no mínimo uma vez por semana, ocupando cerca de cinco mil cadeiras de plástico elas lotam a Praça Tancredo Neves, no centrão de Florianópolis. Muitas estavam bravas, outras se divertiam com as soluções sugeridas – “larga o marido!”, diziam umas. Aproximadamente 80% da categoria é constituída por mulheres.
O presidente do Sintrasem Alex Santos respondeu desta forma: “você tem que explicar para o seu marido que você está defendendo o serviço público da cidade, o seu posto de trabalho e a sua carreira.” Falou com a sua postura séria e determinada. Muitos aplausos. E o grito de “Fora Gean” não tardou.
Por mais que haja uma previsão de pauta de debate para o dia, nas assembleias do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Florianópolis tudo pode acontecer. Além de ser o local de informes, discussões e tomada de decisões, o espaço funciona como um tipo de catarse das/os trabalhadoras/es que sofreram pressão de todos os lados para saírem do movimento.
Ivanilda deve se aposentar daqui a três anos, tem estatura baixa, disposição de lutadora, sempre inova em sua apresentação. Ela cola adesivos na testa, vai com par de óculos engraçado ou alguma fantasia que chame a atenção e fala o que quer, rapidinho e com a voz fina. Uma vez estava com uma máscara do Pânico e algumas pessoas pediram para que ela a retirasse.
– Eu estou com máscara que é para ficar que nem o Gean, aquele mascarado. Safado!, fez questão de falar, no microfone, claro. E continuou usando a máscara.
Se Gean Loureiro contou com o apoio de parte de servidores na eleição, no momento ele é uma das pessoas menos quistas pela categoria. Em um dos encontros, trabalhadores deliberaram pelo início do Fora Gean, e desde então, este grito tem ecoado pelas ruas da cidade sempre que há passeata.
Um trabalhador da assistência social que costuma ir trajado de Super SUS resolveu por bem declarar seu voto das últimas eleições.
– Eu não tenho vergonha de falar: eu fiz campanha para o Gean e votei nele. Ele se comprometeu durante o debate na campanha a dialogar. Meu medo era que a Ângela Amin (PP) fizesse com a gente o que ele está fazendo agora – Ângela foi a concorrente de Gean no segundo turno municipal, ela liderou na contagem de votos até o último momento.
Em um debate promovido pelo Sintrasem no dia 20 de setembro de 2016 o atual prefeito havia feito umas falas bonitas, talvez convincentes para quem ainda enxerga com ingenuidade a política.
– Quero dizer que vou ser um prefeito que vai estar próximo de vocês, que tem capacidade de diálogo. Nós vamos discutir e nós vamos decidir em conjunto, prometeu o então candidato.
A cidade em movimento
A categoria não deixou barata a situação, o prefeito recebeu a alcunha de Gean Louroteiro. Em ritmo de ciranda a multidão entoava “Gean Lorota para de enrolar, com a nossa categoria vem aqui negociar”. O cartaz pendurado no muro do Palácio Cruz e Sousa era ainda mais criativo, com os dizeres “Gean Louroteiro vire menino de verdade… até o Pinóquio aprendeu com suas próprias mentiras”, estampava uma caricatura de Gean com nariz de Pinóquio.
O Trio do Bigode envereda as ruas num caminho quase programado da Tancredo Neves para a Câmara de Vereadores ou Gabinete do Prefeito, contornando a Praça XV. Algumas vezes faz o trajeto pela Avenida Mauro Ramos causando ainda mais impacto. No 7 de fevereiro 10 mil pessoas caminharam por duas horas, passando pela Beira Mar Norte, chegando no Terminal do Centro. Esta foi considerada a maior passeata dos servidores em sua história sindical. O proprietário do carro de som Marcelo aproveita para fazer umas fotos do alto da carreta. Ele acompanha há anos as manifestações do sindicato.
A Fernando Machado – rua paralela à Anita Garibaldi, cortada pela Avenida Hercílio Luz – se habituou a esta movimentação atípica. As trabalhadoras e os trabalhadores se reuniram diariamente na sede do sindicato. Dali saíam em grupos para as atividades organizadas pela rede que se multiplica em todos os locais da capital. Os servidores fazem parte do cotidiano de grande parcela dos habitantes de Florianópolis sem acesso a rede privada de serviços.
A agenda incluiu atos em comunidades, atividades com familiares e usuários da rede nas unidades, panfletagem nas ruas, reuniões, grandes passeatas e visitas a locais de trabalho em que servidores não se juntaram a paralisação. A adesão chegou a 90% do quadro – excetuando-se a percentagem de serviços essenciais mantidos em funcionamento para atender a legislação que determina o direito à greve.
Algumas comunidades participaram mais ativamente do processo. No Monte Cristo, por exemplo, as mães e os pais das crianças entraram na última quinta (16/2) batendo panelas na escolinha para impedir que as aulas retornassem enquanto a maioria de servidores estivesse paralisada. No dia seguinte organizaram nova manifestação no bairro.
Desta forma se tornou impossível ignorar que algo de diferente movimentava o município. O atendente da lanchonete Paraíso Lanches, na rua da sede do sindicato, pergunta em dia de assembleia “como está a greve, continua?”. Nos ônibus, o assunto é recorrente. Esses dias o motorista do Porto da Lagoa falava ao cobrador “esse Gean mentiu tudo na campanha, não tem!?”.
Derrapadas do prefeito
O gestor deu um passo maior que as pernas ao propor em menos de duas semanas de governo um Pacote de Medidas com quase quarenta projetos de leis com alterações em temas essenciais ao funcionamento da cidade. Os projetos foram votados em cinco dias em sessões extraordinárias durante o recesso dos legisladores.
No primeiro dia de votação do pacote, 24 de janeiro, a categoria foi alvejada por balas de borracha, spray de pimenta e bombas de efeito moral em frente à câmara. Trabalhadores da Companhia de Melhoramentos da Capital haviam parado as atividades naquele dia engrossando o caldo das manifestações, na plenária, fervorosos, alguns ameaçavam pegar os vereadores de porrada no final da sessão. Sempre que Roberto Katumi (PSD) se pronunciava, começavam os berros de “Ave de Rapina”, “Ave de Rapina”, “Ave de Rapina”…
Nas internas Lino Peres (PT) recomendou a Katumi que escutasse a população para não sofrer represálias nas ruas. O vereador da Ave de Rapina se sentiu incomodado e, no momento em que algumas câmeras filmadoras estavam a postos, falou virado para uma delas que se acontecesse algo com ele seria culpa do Lino. Gui Prereira (PR) chamou a Polícia Militar que junto a Guarda Municipal tentou impedir as pessoas presentes de protestar contra a votação.
A truculência foi tamanha do lado de fora da câmara que quem havia ficado para dentro respondeu quebrando os bancos de madeira no salão. De fora, trabalhadores reagiram jogando cadeiras de plástico nos guardas municipais. Cerca de seis pessoas foram atingidas por balas de borracha, muitas pelo spray. Havia crianças, velhos e mães no local.
Dois dias depois se discutiria e decidiria pela continuidade da greve, deflagrada para tentar impedir a apreciação dos projetos. A maioria do magistério estava de férias, no recesso do ano letivo. Os representantes dos trabalhadores no Comando de Greve e Conselho Deliberativo se dividiram nas opiniões – eles são responsáveis por avaliar o movimento levando em consideração a conjuntura política para depois apresentar para a assembleia. Um grupo encabeçado pela diretoria avaliou que seria melhor suspender o movimento até o retorno das aulas para garantir a participação massiva. Mas essa possibilidade nem chegou a ser cogitada pela maioria. Uma mulher pegou o microfone:
– Falo como mãe que tava com meu filho não entendendo aquele massacre, falo por cada um que está aqui. Estou há dois anos na rede. Mas não admito que um prefeito corte direitos conquistados em 30 anos de lutas dos companheiros.
A forma como tudo aconteceu causou revolta, as pessoas entraram em peso na greve pela revogação do pacote. A cúpula do PSOL, Lino Peres (PT) e Pedrão (PP) formaram a maior resistência dentro da câmara contra as leis. Marquito (PSOL) reclamou em entrevista ao MARUIM “as várias matérias que passaram, num rito em que os próprios pareceres falavam que teriam que retornar e voltar num rito ordinário e tramitar na forma normal por faltarem os pareceres técnicos. Mesmo assim eles passaram.” O vereador expõe também que:
– De todos os projetos que vieram, na verdade, o único que veio com alguma tabela de valores comparativa foi o da Reforma Administrativa, mesmo assim essa tabela não tinha assinatura de um responsável técnico. No mais, todos os demais projetos, não vieram com essa informação. Tanto é que nosso mandato fez um requerimento ao executivo solicitando ao prefeito que enviasse a tabela oficial.
Nesse jogo Gean perdeu o apoio do PDT da base. O vereador Vanderlei Farias, o Lela (PDT), pediu desligamento do cargo de Secretário Municipal de Cultura e de Superintendente da Fundação Franklin Cascaes e Fundação Municipal de Esportes. Nesta semana o partido lançou uma moção em apoio à greve de municipários.
O prefeito apostou então numa guerra midiática. Soltou nota afirmando que em resposta à demanda do sindicato havia constituído um conselho para discutir o novo plano dos servidores, enquanto o Sintrasem não aceitava um conselho por entender que a lei deveria ser revogada.
Gean tentou impor que estas eram medidas necessárias para contenção de gastos. Mas os servidores iam às ruas falar que não fazia sentido os maiores devedores de Florianópolis não serem devidamente cobrados enquanto eles pagavam a conta pela crise. Faziam também relações comparativas com o dinheiro gasto na câmara municipal e com empresas terceirizadas. Nem todas as comparações servem por não repercutirem na mesma folha de pagamento que determina o limite prudencial determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscal com gastos em pessoal, porém demonstravam bem a incoerência da economia pública.
O prefeito tentou igual construir uma narrativa de intransigência por parte do sindicato. Sem participar de nenhuma mesa de negociação, tendo se negado a dialogar com grevistas num primeiro momento, Gean convocou uma reunião intermediada pela Ordem dos Advogados do estado, o Sintrasem se negou a participar na mesma noite assim que recebeu a convocação. No dia seguinte os representantes sindicais na negociação e alguns vereadores se reuniram no gabinete do prefeito, Gean decidiu ir para a OAB de qualquer forma e lá gravou um vídeo para postar na sua página oficial no facebook.
Mas a sua maior ousadia talvez tenha sido pedir a prisão da diretoria do sindicato e a intervenção judicial na organização. Não demorou para que a ameaça, prontamente remediada, recebesse a desaprovação de centenas de entidades sindicais, movimentos sociais e partidos dentro e fora do país.
Repercussão
Na ocasião da criminalização do movimento com pedido de prisões dos diretores, entidades e pessoas do mundo todo enviaram cartas de solidariedade ao movimento grevista de Florianópolis, pela liberdades democráticas e sindicais. Cartas de solidariedade foram enviadas desde Espanha, Canadá, França, Bélgica, El Salvador, Iraque, Alemanha, Grã Bretanha, Dinamarca, entre outras localidades. Importantes entidades e movimentos no Brasil se pronunciaram como MST, da Confetam, CNQ-CUT, CUT-SC, Sindicato dos Petroleiros do RJ, SINTE-SC, SINSEJ (Joinville), Fábrica Ocupada Flaskô, Ocupação Vila Soma (Sumaré), Associação de Moradores do Adhemar Garcia (Joinville), DCE do IELUSC. Além de diretores do Sindicato dos Ferroviários da Bahia, Sindicato dos Ferroviários de Bauru e MS, Sindicato dos Vidreiros de SP, Federação Nacional dos Petroleiros, PCB, Partido Obreiro da Argentina, CSP Conlutas, CTB, entre outros.
Luciana Genro (PSOL) participou da assembleia do serviço público no dia 16 de fevereiro. Em entrevista, ela falou que “não poderia deixar de atender o pedido do sindicato porque essa é uma das greves mais importantes que está acontecendo no Brasil, uma greve que tem 30 dias e que enfrenta os ataques brutais aos direitos dos trabalhadores perpetrados aqui pelo prefeito mas que reproduzem em outros estados”.
– E acredito que qualquer possibilidade real de greve geral no Brasil vai partir de lutas como essa, de greves que estão acontecendo ou que necessitam acontecer por demandas específicas imediatas dos trabalhadores, seja por mais conquistas, seja pra impedir a retirada de direitos como ta acontecendo aqui.
Neste dia os trabalhadores saíram em uma grande passeata pelas liberdades democráticas e sindicais, acompanhados pelo coletivo de maracatu Arrasta Ilha até o terminal central. Juntaram-se na caminhada diferentes partidos e sindicatos, inclusive o Sindicato dos Trabalhadores no Transporte Urbano de Passageiros da Região Metropolitana de Florianópolis, que chegou a sinalizar paralisação nas atividades nesta semana para “defender o serviço público de Florianópolis”, segundo nota oficial do Sintraturb.
Ajuste Fiscal
As justificativas do executivo municipal para as medidas tomadas são as mesmas anunciadas pelo seu correligionário Michel Temer (PMDB), na presidência, as dívidas públicas e a necessidade de contenção de gastos públicos. Em âmbito federal tramitam projetos de lei Reforma Trabalhista, com flexibilização da CLT, e a Reforma da Previdência, que prevê mudanças drásticas no regime de aposentadoria determinando, por exemplo, a necessidade de 49 anos de contribuição e 65 anos de idade mínima para receber o benefício integral.
A educadora há 17 anos na rede municipal Rosilene Amorim dos Anjos integra o Núcleo da Auditoria Cidadã da Dívida Pública em Santa Catarina. Ela milita pela auditoria das dívidas estaduais e municipais.
– Como educadora, a gente percebe que tem tudo a ver a divida pública e a retirada de direitos como a previdência, a saúde, a educação e todo o desmonte do serviço público. César Souza [Junior] (PSD) saiu ano passando [da prefeitura] dizendo que nós tínhamos uma dívida de 90 milhões de reais, Gean inicia dizendo que a cidade tá falida e que temos 1 bilhão em dívidas e agora parece que a dívida foi para 500 milhões. A dívida oscila muito para cima e para baixo, percebe?
Auditar as dívidas públicas é rever a sua origem para descobrir se há contratos superfaturados, se estamos pagando dívidas que foram feitas em benefício do serviço público, e não, como acontece, de uma grande empresa privada que coloca o município, estado e país como avalista de suas dívidas.
– Para a gente acreditar [no prefeito], ele tem que fazer auditoria. Isso está na Constituição Federal, auditoria no município, estado e em âmbito nacional.