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Postado em 20 de novembro de 2014 Por Em Brasil E 1424 Views

Relação desigual no acolhimento e tratamento de saúde da população negra

“As pessoas que sofrem discriminação podem estar sujeitas a uma situação permanente de hipervigilância. É uma fonte crônica de estresse psicossocial que pode ter consequência direta sobre a saúde mental e física das pessoas”, explica o médico Eduardo Faerstein, da UERJ

Por Elisa Batalha.

Em abril, o jogador de futebol Daniel Alves, do Barcelona, comeu uma banana atirada no campo de futebol onde jogava, como forma de desmoralizar a ofensa, recebendo manifestações de apoio ao gesto, em todo o mundo. Em junho, foi instituída no Brasil a cota para negros no serviço público da administração federal, medida anunciada pela presidenta Dilma Rousseff, na 3ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), realizada em novembro de 2013, em Brasília. O episódio do estádio espanhol e a iniciativa governamental suscitaram novas discussões e polêmicas em torno de um tema mobilizador: racismo e questões a ele relacionadas como direitos, equidade, preconceito e discriminação. Quando o debate se dá especialmente em relação à população negra – ou afrodescendente – do país, envolve a maioria dos brasileiros: 54% que se autodeclaram pretos e pardos, de acordo com o Censo de 2010, e 70% dos usuários do SUS, segundo dados da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir), publicados no Relatório Anual de Saúde (2011).

Dez anos após a instituição da primeira política de cotas raciais em universidades públicas, que começaram a vigorar no segundo semestre de 2004, na Universidade de Brasília, e onze anos depois da criação da Seppir, é possível recorrer a exemplos e estatísticas contundentes para mostrar que o cotidiano, a qualidade de vida e, portanto, a saúde da população negra no Brasil é prejudicada pelo racismo institucional, caracterizado por medidas que excluem direta ou indiretamente, ou mantêm em situação de desvantagem em termos de oportunidade, determinados segmentos da população. Essas questões estiveram na pauta da 3ª Conapir que, entre outras resoluções, definiu a necessidade de criação de uma instância de enfretamento ao racismo institucional e promoção da igualdade racial no âmbito do Ministério da Saúde (ver a íntegra das resoluções no site do Radis).

A cor do SUS

Em 2011, o Estado brasileiro foi condenado, com base na Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, das Nações Unidas, pela morte de Alyne da Silva Pimentel, mulher negra, moradora do município de Belford Roxo (RJ), vítima de uma sucessão de erros médicos, que tiveram início em uma clínica particular, na qual havia perdido seu bebê, já no sexto mês de gestação, e culminaram quando deu entrada no Hospital Geral de Nova Iguaçu, em 16 de novembro de 2002. Ela aguardou longas horas no corredor da emergência para ser atendida, por não haver leito disponível, não dispunha de documento do hospital anterior que indicasse seu estado clínico, teve hemorragia, queda da pressão arterial, entrou em coma e morreu, cinco dias depois do primeiro mal estar que a levou a procurar atendimento. “As pessoas não escolhem e tampouco são escolhidas, de modo meritocrático, para ficar doentes, sofrer, sentir dor”, escreveu a sanitarista Ligia Bahia sobre o caso, no artigo A cor do SUS (O Globo, 25/11/2013). “Mais de 40% das negras nunca realizaram uma mamografia”, mencionou, como exemplo de exclusão.

Alyne representa uma triste estatística. A mortalidade materna no país é de 65 mulheres em cada 100 mil nascidos vivos. Mais da metade (57%) das gestantes que morreram em 2009 em decorrência da gravidez ou parto são negras (pardas e pretas, de acordo com a classificação do IBGE). “Em situação de abortamento, as mulheres são discriminadas e as negras são mais que as brancas. Serão as últimas a serem atendidas, correndo risco de morte”, analisa a pesquisadora Alaerte Leandro Martins, que integra a Comissão de Prevenção da Morte Materna do Ministério da Saúde. A metade dos óbitos deve-se a aborto espontâneo, acrescenta.

Já para os homens negros, atitudes como revistas policiais injustificadas são cotidianas. A violência expressa-se com mais evidência nos índices de homicídios: em 2010, 67% dos mortos por homicídio no país eram negros. Na faixa etária entre 15 e 29 anos, ou seja, entre os jovens, 70% dos assassinados são negros (dados do SIS/MS). As crianças negras também morrem mais. As taxas de mortalidade neonatal e infantil (até os 5 anos) entre os filhos de mães negras são mais altas e apresentaram redução menor nos últimos anos. Estudo feito por pesquisadores de Pelotas, Rio Grande do Sul (Radis 124) mostrou que, durante 22 anos, no período de 1982 a 2004, as mortes de recém-nascidos caíram 47% entre filhos de mães brancas e 11% entre nascidos de mães negras.

“A perda de seus filhos e filhas provoca dor, desagregação e medo nas famílias”, observa o coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, José Marmo da Silva. A violência e os números desfavoráveis, diz, são só “a ponta do iceberg” da discriminação. “O racismo interfere na autoestima das pessoas, na sua potencialidade criativa, podendo causar desagregação interna e não aceitação da sua própria imagem, e isso é muito ruim para a saúde e para uma vida plena”, afirma Marmo.

Prevalência de doenças

Algumas doenças apresentam altas taxas de prevalência na população negra, como hipertensão, diabetes e obesidade. Há predisposição genética relacionada à origem étnica descrita na literatura médica, para alguns tipos de doença, como a anemia falciforme, predominante na população negra, ou a talassemia, em descendentes de italianos. Além de fatores ligados à hereditariedade, a perda de qualidade de vida causada pela discriminação e pelas condições sociais desfavoráveis, pode estar relacionada a índices mais altos de doenças crônicas, como explica Eduardo Faerstein, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

“As pessoas que sofrem discriminação, seja no ambiente escolar, ambiente de trabalho, lugar de moradia ou em instituições públicas, podem estar sujeitas a uma situação permanente de hipervigilância. Mecanismos psiconeuroendócrinos levam o organismo a se manter a qualquer momento preparado para uma reação de fuga ou luta. É uma fonte crônica de estresse psicossocial que pode ter consequência direta sobre a saúde mental e física das pessoas”, explica o médico.
Outros mecanismos, ainda, levam a discriminação a afetar a saúde. Conforme apontou Eduardo, coautor do livro Discriminação e Saúde (Editora Fiocruz, 2012), as pessoas submetidas a essas experiências de forma repetida podem desenvolver hábitos e comportamentos como adição a drogas, dietas não saudáveis, tabagismo, ou privação de sono. São mecanismos intermediários, de reação.

De acordo com o livro, preconceito pode ser definido como atitude que dispõe de componente cognitivo e afetivo e como “predisposição a se comportar negativa ou positivamente em relação a algum grupo socialmente definido”.

Atraso

“É importante estudar o fator cor/raça na pesquisa em saúde. A ciência em saúde chegou atrasada a esse tema”, analisa Eduardo. Nas Ciências Sociais, lembra, sob vários ângulos e perspectivas, já se discute a questão racial brasileira há muitos anos. Se inicialmente isso foi analisado sob um ponto de vista ensaístico e qualitativo, a partir dos anos 1980, aumentaram os dados quantitativos disponíveis que revelaram a desvantagem sistemática da população negra brasileira, em relação a educação, trabalho e, finalmente, saúde, com séries de dados mais consolidados de mortalidade e morbidade para algumas doenças. “Ficou evidente que também no campo da saúde a população negra sofre desvantagens sistemáticas em relação à população branca”, aponta.

Se, conforme aponta o pesquisador, havia controvérsia sobre a possibilidade de se medir a discriminação, como uma experiência complexa, hoje, já se aceita que é possível desenvolver instrumentos para essa aferição, ao longo da vida. “Existem questionários sofisticados, instrumentos detalhados e validados”. Há, ainda, instrumentos que não se baseiam apenas no relato individual, já que muitas vezes a discriminação afeta mesmo quando não é feita ou percebida de maneira declarada.

Relação desigual

Para José Marmo, há, por exemplo, relação desigual no acolhimento e tratamento, nos serviços de saúde, dos praticantes de religiões de matriz africana, por conta do racismo e da intolerância religiosa, “que, aliás, vem se acirrando cada vez mais”, observou. Marmo lembrou ainda episódio recente da Justiça Federal, que chegou a considerar que candomblé e umbanda não seriam religiões (ver Toques, na pág. 9). A decisão foi posteriormente revogada por desembargador da Vara Federal do Rio de Janeiro. “Isso cria uma situação que acaba por não garantir o direito à saúde dos povos de terreiro”.

Outro exemplo é a dificuldade que o Programa Saúde da Família tem em visitar os terreiros localizados no seu território de atuação, aponta. Para ele, é preciso olhar para esses espaços como promotores da saúde e parceiros do SUS. “Devemos lembrar que eles possuem práticas milenares de cuidados com a saúde. Reivindicamos tratamento humanizado e que respeitem a nossa cultura”.

A pesquisadora da Fiocruz Dora Chor, do Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), defende que é preciso maior número de estudos epidemiológicos brasileiros a respeito dos efeitos da discriminação racial na saúde, já que nosso país apresenta contexto social e étnico-racial diferente. “Tenho utilizado o quesito raça/cor tal como é expresso no Censo, já que pesquisas demonstram que os brasileiros usam essas categorias mesmo que possam se referir a sua cor/raça com outros termos“, explica. “Esse aspecto é parte da identidade dos indivíduos, especialmente daqueles que sofrem a discriminação. E uma característica das relações entre as pessoas e da forma como a estrutura social trata diferentes grupos e indivíduos”, analisa Dora, que faz parte do grupo de pesquisadores que coordena o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), que acompanha, em longo prazo, a condição de saúde de uma amostra da população de servidores públicos. “Do Elsa virão os primeiros resultados brasileiros sobre a relação entre cor/raça, discriminação e saúde desde a ancestralidade genética, utilizando dados de marcadores moleculares, até o conceito social (discriminação) percebido pelos participantes“, diz.

Política Nacional

Tomando como base que o racismo e a discriminação étnico-racial são determinantes sociais da saúde, foi instituída em 2009, pela Portaria nº 992, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). A política, no entanto, não se concretizou, como consideram ativistas do movimento negro. Para Jurema Werneck, fundadora da ONG Criola e integrante do Conselho Nacional de Saúde de 2007 a 2012 (ver entrevista na pág. 14), a Política Nacional foi construída a partir de conquistas da sociedade civil, mas ainda não saiu efetivamente do papel. “Não temos ação de saúde voltada à população negra”, considera. “Dentro do Ministério da Saúde, há um retrato do atraso quanto a esse tema. Viemos de conquistas em uma espiral crescente, desde a proposição [original da política], mas estamos no pior momento dessa história”.

Na abertura da 3ª Conapir, a presidenta Dilma Rousseff, além de anunciar a instituição de cotas para pretos e pardos no serviço público federal (lei sancionada em 9/6), reforçara a necessidade de criação de uma instância de enfrentamento do racismo na Saúde. “Vamos criar no Ministério da Saúde uma instância específica para coordenar ações voltadas para a população negra”, anunciou.

Os delegados tinham a expectativa de que essa instância se vinculasse ao gabinete do ministro da Saúde. A definição do governo, no entanto, se deu pela alocação dessa instância, voltada à implementação da Política, no Departamento de Apoio à Gestão Participativa (Dagep) da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) do ministério.

“O racismo institucional é uma realidade, por isso é necessário que as instituições revejam suas práticas cotidianas. A primeira delas, sem dúvida, é tirar o tema da invisibilidade”, considera Kátia Souto, diretora do Dagep, explicando que a SGEP, uma das sete secretarias do ministério, é responsável pela articulação com as demais; pela intersetorialidade com outros órgãos de governo; pela articulação interfederativa com as secretarias estaduais e municipais de saúde, e com os movimentos sociais. “Temos envidado esforços, especialmente, no que diz respeito a metas referentes à redução da mortalidade materna e de mortalidade da juventude negra, a qualificação do quesito raça/cor em estudos e registros e o monitoramento e avaliação da PNSIPN”, diz.

“Não é ali o lugar dessa política. O Dagep volta-se, principalmente, para a interface com a sociedade civil”, rebate Luis Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo, e Integrante do Comitê Técnico de Saúde da População Negra e da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. “A Secretaria de Atenção em Saúde (SAS) seria um lugar mais adequado dentro do ministério para a Política, que exige maior articulação com os outros programas”, critica.

Para Luiz Odorico Monteiro de Andrade, professor da Universidade Federal do Ceará e que esteve a frente da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, a política é uma grande conquista, citando entre suas diretrizes a inclusão do tema Racismo e saúde nos programas de educação permanente dos trabalhadores e no controle social da saúde. E, ainda, a ampliação da participação do movimento social negro nas instâncias de controle social, o desenvolvimento de processos de informação, comunicação e educação permanente que desconstruam os estigmas e preconceitos, reduzam as vulnerabilidades e fortaleçam os laços de solidariedade e respeito mútuo.

Ações isoladas

Jurema Werneck relembra que o embrião da proposta da Política Nacional foi constituído em 2001, a partir da articulação do movimento social negro no Brasil, com ajuda da Organização Panamericana da Saúde (Opas) e de agências das Nações Unidas, e que a trajetória foi longa. A criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2003, abriu caminho para se instituir no Ministério da Saúde, em 2004, o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, relata. Em 2005, o movimento negro passou a ter representação no Conselho Nacional de Saúde e, no ano seguinte, foi aprovada a criação da Política, sob a forma de portaria, e que seria pactuada entre os três entes federativos. “Depois de muita pressão”, o Congresso aprovou a Política Nacional como capítulo do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288). “Mesmo assim até agora não conseguimos que o SUS fizesse alguma coisa com a Política”, avalia.

José Marmo concorda com a análise. “O que podemos perceber são algumas ações isoladas e sem continuidade, muito incipiente para o que a Política se propõe”, observa. “Continuamos morrendo precocemente por causas evitáveis. Estamos reféns de planos de saúde para pobre, que não vão oferecer aquilo que prometem, e que as pessoas pagam com sacrifício e estamos reféns de um SUS que não nos atende”, considera Jurema. “Para a universalidade se realizar, precisa justamente de ações afirmativas, para que cada sujeito diferente tenha um tratamento que propicie igualdade de acesso”.

Para Luis Eduardo, subsidiar as redes de atenção à saúde com dados desagregados por cor é ação urgente e necessária. “Atualmente, com os dados desagregados apenas por município, idade e sexo, invisibiliza-se o que acontece com a população negra, com os quilombolas, com a população ribeirinha, indígena ou sem terra localizadas nesses municípios. Na hora de fazer um mapa de saúde, é preciso haver essa informação nos perfis epidemiológicos, para se conseguir desenhar as necessidades desses grupos populacionais vulneráveis”, aponta.

Eduardo defende, ainda, que as diferentes políticas em saúde têm que conversar para que se obtenha a equidade. “A grande dificuldade de gestão em implementar a política é que grande parte dos nossos gestores não veem a saúde da população negra como inserida na questão da equidade. Os dados epidemiológicos estão mostrando como as condições de vida e sociais em desvantagem afetam a saúde. Pensar em racismo como estruturante da desigualdade é conversar com a Rede Cegonha, conversar com a política de saúde mental e com a de aids. É importante que esses setores conversem e disponibilizem os dados desagregados por cor. Hoje, uma política não dialoga com a outra”, analisa.

| Fonte: Revista Radis, edição 142, julho 2014.

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