Mesmo após alerta de diretora da fabricante, Ministério teria dado aval para reverendo negociar compra de doses de vacina com suposta intermediária e se reunido com policial que se dizia representante da farmacêutica.
A farmacêutica AstraZeneca informou em janeiro deste ano ao governo federal que não negociava a venda de seu imunizante contra a Covid-19 por meio de intermediários, segundo documento encaminhado pelo Ministério da Saúde à CPI da Pandemia e noticiado pelo portal G1 na quarta-feira, 28.
“Toda a produção da vacina AZD 1222 durante o período da pandemia é destinada exclusivamente a governos e organizações internacionais de saúde ao redor do mundo, ou seja, não há possibilidade de comercialização da vacina produzida pela AstraZeneca no mercado privado”, dizia um e-mail de uma diretora da AstraZeneca citado no documento.
O e-mail foi enviado em 29 de janeiro à Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, depois de a farmacêutica tomar conhecimento de que uma empresa do Espírito Santo oferecera doses ao governo, segundo o G1.
Mesmo após o e-mail, Laurício Monteiro Cruz, então diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, teria dado, em fevereiro, aval para que um reverendo evangélico, Amilton Gomes, negociasse com a empresa Davati Medical Supply doses da vacina da AstraZeneca em nome do governo brasileiro.
A autorização formal teria sido dada por Cruz em 9 de março. Em 10 de março, a tratativa entre Gomes e Cruz já estava formalizada no sistema eletrônico do Ministério da Saúde, e foi em seguida enviada para a secretaria-executiva da pasta. Gomes é fundador e presidente da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários – Senah, uma organização privada.
Segundo informações obtidas pelo Jornal Nacional, o representante da Davati no Brasil, Cristiano Carvalho, se reuniu com Élcio Franco, então secretário executivo do Ministério da Saúde, em 12 de março. Gomes também teria participado do encontro. Cruz também enviou e-mails a Herman Cardenas, presidente da Davati, confirmando que a Senah tinha aval do Ministério da Saúde para negociar a compra de vacinas.
Negociações suspeitas e diretores exonerados – Cruz foi exonerado no início deste mês. Ele foi citado no depoimento à CPI de Luiz Paulo Dominghetti Pereira, policial militar em Minas Gerais que também atuava como representante da Davati. As acusações contra o agora ex-diretor também foram reveladas em e-mails aos quais a TV Globo teve acesso.
Dominguetti também disse ter se reunido em 25 de fevereiro em um restaurante de Brasília com Roberto Ferreira Dias, então diretor de Logística do Ministério da Saúde, e o tenente-coronel Marcelo Blanco, que então era assessor do Departamento de Logística da pasta, e negociado a venda de 400 milhões de doses da vacina produzida pela AstraZeneca. Na ocasião, Dias teria pedido propina de 1 dólar por dose para fechar o negócio.
A acusação de cobrança de propina foi feita pela primeira vez em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em 29 de junho, e Dias foi exonerado do cargo no mesmo dia. À CPI, ele negou o suposto esquema de corrupção.
Desde o início, a história tinha elementos suspeitos. A Davati, sediada nos Estados Unidos, foi fundada em 2020 e tem apenas três funcionários. A AstraZeneca negou ter trabalhado com a empresa e afirmou que todas as vendas no Brasil foram tratadas com a Fiocruz.
Ao lado dos casos Covaxin e CanSino, o alegado pedido de propina envolvendo a vacina da AstraZeneca mudou o foco do debate público sobre a atuação do governo Jair Bolsonaro na pandemia Covid-19, que girava em torno de uma postura de negação às recomendações científicas, e passou a se debruçar sobre escândalos de corrupção e negociações suspeitas para a aquisição de imunizantes.