Via CNTS
Mais de 150 milhões de brasileiros dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde, que completou 30 anos no último sábado. O Sistema que oferece gratuitamente o maior programa de vacinações e de transplantes de órgãos do mundo, resiste a desafios estruturais, desmonte do governo e pandemia.
A Constituição Brasileira de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, incorporou em seu capítulo “da Seguridade Social” a saúde como um direito de todos e dever do Estado. Na nova Constituição, a saúde é considerada um direito fundamental do ser humano. Nesse sentido, o Estado deve prover as condições indispensáveis ao pleno exercício da saúde para a população. Para viabilizar esse direito, em 19 de setembro de 1990, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei 8080/1990 que criou o Sistema Único de Saúde – SUS no Brasil. Esta lei regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por entidades públicas ou privadas.
O Movimento da Reforma Sanitária foi fundamental para a inclusão dos temas de saúde na nova constituição e para a promoção de avanços nos cuidados em saúde para além da estrutura hospitalocêntrica existente até então. Portanto, o SUS, em grande medida, é fruto da mobilização desse movimento para a submissão de uma emenda popular nesse sentido. No final da década de 1970 o Movimento da Reforma Sanitária começa a ganhar força e, em 1986, com apoio dos movimentos sociais e sindicatos, foi realizada a 8ª Conferência Nacional de Saúde. É nesta conferência que se consolida a estrutura de um sistema de saúde para além do cuidado hospitalar precário e restrito a poucos que existia até então no Brasil.
Começa a se concretizar um sistema de saúde baseado nos preceitos da regionalização, resolutividade, com cuidado em saúde descentralizado e participação dos cidadãos na sua estrutura de gestão. Assim, com esse novo Sistema, foi instituída uma série de políticas e programas que mudaram o cenário brasileiro de assistência à saúde.
Sistema único revolucionário – A partir da implementação do SUS, em 1990, começava a tentativa de consolidação da saúde como direito universal no Brasil. Com o novo modelo, qualquer um passava a ter atendimento garantido em qualquer esfera. Antes disso, menos da metade da população conseguia acesso.
As políticas diminuíram a mortalidade infantil em mais de 70%, aumentaram a expectativa de vida do brasileiro, ampliaram acesso a atendimento pré-natal, mudaram os tratamentos para doentes mentais, as ações de combate a doenças e a vida da população em geral.
Foi também por meio do SUS que cerca de 90% dos transplantes do país passaram a ser realizados. Tratamentos de alta complexidade, tecnologias e medicamentos começaram a chegar a quem vivia totalmente à margem. Hoje, todos que procuram a uma unidade do SUS têm direito ao atendimento, independentemente de origem, histórico ou condição financeira.
O Sistema Único de Saúde é reconhecido internacionalmente pelas ações de atenção básica do programa Saúde da Família, por exemplo. A iniciativa atende mais de 120 milhões de brasileiros regularmente. As equipes atuam conhecendo a realidade dos pacientes, prestando orientações frequentes e acompanhamento constante. O reconhecimento vem da própria Organização Mundial da Saúde – OMS, que incluiu o Saúde da Família entre as melhores iniciativas do planeta na área.
É também por meio do SUS que o Brasil oferece acesso gratuito e universal aos tratamentos de HIV/Aids e hepatite, de custo altíssimo. No caso da Aids, estimativas apontam que o sistema alcança cerca de 90% dos soropositivos do país. Em duas décadas, a mortalidade entre essas pessoas caiu mais de 40%.
Soma-se a esses exemplos, um complexo de milhares de hospitais, mais de 50 mil ambulatórios, equipamentos móveis e uma infinidade de profissionais. São cerca de 2 bilhões de procedimentos a cada ano, entre cirurgias, tratamentos, internações, vacinas, campanhas e outras atividades. É possível dizer que o Sistema Único de Saúde representou uma revolução sem precedentes.
Desafios e desmonte – Podemos afirmar que, nesses 30 anos, os SUS passou por três fases de desenvolvimento. A primeira fase, entre 1990 e 2002, de expansão contida do Sistema com aumento moderado do investimento público e criação de alguns programas importantes, como o Programa Saúde da Família, criado em 1994. A segunda, de 2002 a 2016, de franca expansão com maior aumento do investimento público nas políticas de saúde e criação de uma séria de programas importantes para o aumento da cobertura do SUS à população brasileira, como o Programa Mais Médicos em 2014. Por fim, o SUS vem passando por uma terceira fase, a partir de 2016, de retrocesso com diminuição importante do investimento público e consequente enfraquecimento de uma série de programas de saúde.
Portanto, nos dias de hoje, o SUS passa pelo período mais difícil desde a sua criação. Diante dos obstáculos gerados pelas crescentes restrições orçamentárias, desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, tem sido complicado garantir a sustentabilidade do Sistema e evitar a deterioração dos indicadores de saúde da população. Mesmo em meio a maior crise sanitária dos últimos cem anos, a pandemia de Covid-19, o financiamento público para sustentar o fornecimento dos serviços de saúde não está assegurado.
Em toda sua história, o SUS vem enfrentando crises de má gestão e de subfinanciamento, além de uma política de privatização da assistência e precarização do trabalho imposta pelos governos para atender ao setor privado. A CNTS, entidade nacional a qual a FETESSESC é filiada, sempre entendeu que a melhor campanha em defesa do Sistema Único de Saúde seria levar para mais perto da população as suas instâncias de decisão, de participação da sociedade na discussão das políticas para a saúde, por meio da criação dos conselhos de saúde.
Para que os princípios constitucionais sejam respeitados em sua íntegra, a CNTS defende a retomada do processo de reorganização e fortalecimento do sistema público de saúde na busca da implantação definitiva do SUS. Para isso, é essencial reconhecer os problemas, identificar suas causas, aprovar medidas de enfrentamento das dificuldades e discutir amplamente o conceito de saúde. Veja todas as ações e bandeiras defendidas pela CNTS em prol do SUS, clique aqui.
Investimento sempre foi insuficiente – A lista de revoluções que o Sistema Único de Saúde trouxe para a população brasileira é grande, mas o financiamento destinado a ele nunca foi suficiente. Quando foi estabelecido pela Constituição, havia a previsão de que o SUS receberia 30% do orçamento da seguridade social, o que nunca se efetivou. Embora mais de 150 milhões de brasileiros dependam exclusivamente do SUS, o Brasil aplica, efetivamente, menos de 4% do seu PIB em saúde, o menor percentual entre os países que têm sistemas universais, enquanto parâmetros internacionais apontam pelo menos 7%.
Até mesmo o mecanismo criado para contornar o problema, a Contribuição Provisória Sobre Movimentações Financeira – CPMF, não foi usada exclusivamente para a saúde. Criada no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ela foi motivo de polêmica. Causou o pedido de demissão do então ministro da Saúde, Adib Jatene, descontente com a destinação de parte dos recursos para outros fins por parte da equipe econômica da gestão tucana.
A questão somente se equaciona no ano 2000, com a Emenda Constitucional 29, em que foi possível estabelecer um piso para a saúde, da União, dos estados e municípios. Foi o primeiro momento em que se encontrou uma forma de reduzir a questão da instabilidade do financiamento do SUS.
Anos mais tarde, o governo de Michel Temer (MDB) estabeleceu o teto de gastos para as despesas primárias do governo por 20 anos, com a Emenda Constitucional 95, de 2016. Com o teto de gastos, o investimento no SUS, que era de 15,77% da receita corrente liquida em 2017, caiu para 13,54% em 2019. A nova regra diz que o piso de 2017 será mantido por duas décadas, corrigido apenas pela inflação. O congelamento do piso e o crescimento da população fazem cair consideravelmente o investimento em saúde por habitante. Em três anos, o SUS perdeu mais de R$ 22,5 bilhões.
Pandemia – O teto de gastos dificultou as possibilidades de enfrentamento do novo coronavírus e a estrutura do SUS entrou na crise sanitária global depreciada. Além disso, os recursos definidos pelo governo federal demoraram a chegar.
O estado de calamidade pública foi decretado no início de março, mas a maior parte do orçamento sequer tinha sido executada até a primeira semana de junho. Na ocasião, o Brasil já havia entrado no lamentável platô de mais de seis mil mortes por semana, que durou quase quatro meses.
Para completar o estrago, o governo enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias que pode acarretar em perda de R$ 35 bilhões ao SUS em 2021.
Apesar do “desfinanciamento”, o SUS é apontado como a grande arma brasileira para enfrentamento do novo coronavírus. A cada dia, a percepção de que sem ele o Brasil poderia ter entrado em colapso aumenta. Parafraseando o médico oncologista Drauzio Varella, sem o SUS, é a barbárie.